CRÔNICA
As duas faces dos Estados Unidos

 

Para o mundo inteiro, que é obrigado a olhar para os Estados Unidos, o resultado da
múltipla imagem é perplexidade e ambivalência

 

A viagem de Bush ao Brasil tem dois objetivos pontuais. Um, econômico: implementar a "Diplomacia do etanol", fazendo com que a participação do álcool combustível cresça na matriz energética americana. O outro é político: tentar neutralizar a influência do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, no continente.

Mas há um significado maior nessa visita. Porque George Bush não é os Estados Unidos, um país muito maior e mais complexo do que seu problemático presidente. Complexo, no caso, implica contradições. De um lado, a história americana é uma história admirável: um país que nasce sob o signo da democracia, um país que, diferente da matriz européia, não teve monarquia nem nobreza. Aristocracia, lá, nunca foi credencial, e nem o

foram os equivalentes da aristocracia, os figurões com seus carteiraços e os seus "sabe com quem está falando?" Um país aberto, que recebeu imigrantes, dirigindo ao Velho Mundo a mensagem sintetizada nos versos de Emma Lazarus: "Dá-me teus exaustos, teus pobres/ tuas encurraladas massas ansiosas por respirar liberdade". Um país que sempre acreditou no trabalho, inclusive e principalmente o trabalho manual, que, na América Latina, era desprezado como coisa de escravos. Um país que valoriza o conhecimento e a criatividade, um país vanguardista na ciência e na tecnologia. 

Essa é uma face dos Estados Unidos. Existe outra: o país racista, o país da Ku Klux Klan, o país que invadiu seus vizinhos, o país que expulsa mexicanos (e brasileiros), o país que, em certo momento, virou polícia do mundo, intervindo nos lugares mais distantes, não raro (vide Iraque) com resultados catastróficos. O país que impõe sanções, que adota medidas protecionistas (contra o etanol, inclusive). O país de fanáticos religiosos, o país do obscurantismo político. Bush é um produto desse segundo país; mas foi eleito democraticamente e breve, diferente de caudilhos que se eternizam no poder, deixará o cargo.  

Para o mundo inteiro, que é obrigado a olhar para os Estados Unidos, o resultado dessa múltipla imagem é perplexidade e ambivalência. Nada simboliza melhor essa ambivalência que a imagem do cara vestindo uma camiseta que homenageia (com palavras em inglês) um conjunto musical americano e que está, ao mesmo tempo, queimando uma bandeira americana. Uma contradição persistente, apesar de todas as tentativas de expurgar as palavras em inglês do vocabulário. Vamos continuar chamando o "mouse" de "mouse", apesar daqueles que querem rebatizar esse equipamento de "rato". Da mesma maneira, apesar das acusações divulgadas na mídia de que o Itamaraty tem uma política antiamericana, Bush virá aqui e virá para negociar. Ou seja, temos de aprender a conviver com as contradições de nosso mundo, abrindo caminhos para a compreensão, a justiça e a tolerância. O que só pode ser feito com diálogo, não com bombas ou queimando bandeiras.

 

Fonte: Ag. Carta Maior, Moacyr Scliar, 9/3/2007.


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