PICDT, PQI e PNCD:
Nexos e determinações entre capacitação docente
e a reforma da educação superior

 

O Programa Qualificação Institucional (PQI), lançado, no início deste ano pela CAPES em substituição ao Programa Institucional de Capacitação Docente e Técnica (PICDT), é parte integrante e indissociável da reforma educacional empreendida pelo governo FHC-Paulo Renato para a educação superior pública. Tal reforma segue as recomendações dos organismos internacionais, dentre eles o Banco Mundial, e tem como centralidade a restrição de gastos com a educação superior pública, como se evidencia no trecho extraído do relatório do BM a seguir:

 

A experiência demonstra que, se se quer que as instituições estatais melhorem sua qualidade e eficiência, os governos deverão efetuar reformas importantes no financiamento a fim de mobilizar mais recursos privados para o ensino superior em instituições estatais.[1] (grifos nossos)

 

No conjunto das reformas que vêem sendo implementadas ao longo dos dois governos de FHC, o PQI se configura como uma das mais graves na medida em que visa a atingir especificamente a qualidade do ensino oferecido pelas instituições de ensino superior públicas que, mesmo diante da crise que vivenciam, ainda são as que oferecem ensino de melhor qualidade no país (segundo dados do próprio MEC). Com este programa, o MEC promove o ajuste das regras para a capacitação docente à lógica de centros de excelência, revestindo-o de um verniz moralizante de legitimação, com o apoio das “comissões de especialistas”, que, ao fim, sanciona um profundo corte nas verbas destinadas à qualificação docente.

 

Essa tentativa de “moralização” pode ser evidenciada nos argumentos apresentados pela CAPES para a substituição do PICDT pelo PQI. A agência detectou 

 

A acumulação de situações desfavoráveis, como o predomínio da decisão individual na capacitação docente; a ausência de definição de áreas e linhas de pesquisa por parte das IES de origem dos docentes em capacitação e a inadequação regional do objeto da investigação escolhido para a pesquisa; baixo retorno dos investimentos em qualificação face a idade média elevada de boa parte dos beneficiados do PICDT associada a prazos de formação mais altos do que os não docentes[2]. (Grifos nossos)

 

Os argumentos são falaciosos, pois é sabido que o PICDT proporcionou a qualificação de grande parte dos docentes, principalmente das IES públicas, elevando a qualidade do ensino e da pesquisa nessas Instituições (o que incomoda o MEC). É inegável que as IES públicas são as que mais produzem conhecimento no país (cerca de 90% das pesquisas produzidas no Brasil são realizadas nas IES públicas) como resultado de um programa que, embora não sendo o ideal, criou condições para isso, além do que a titulação docente constitui-se num dos critérios definidos pelo próprio MEC para medir o trabalho desenvolvido nas IES.

 

É importante observar ainda que, por trás desses “argumentos”, oculta-se a verdadeira intenção do MEC: a desvalorização do trabalho docente que perde sua autonomia e passa a ser controlado, adequado e uniformizado segundo critérios de produtividade, a partir da lógica racionalizadora do capital, gerando na prática a sua desqualificação gradativa (a primeira ação nessa direção foi a imposição da famigerada GED).

 

A análise dos números divulgados pela CAPES demonstra ainda mais claramente a política imposta pelo MEC. Verificamos que, no primeiro edital de chamada para apresentação de propostas, foram encaminhados 289 (duzentos e oitenta e nove) projetos para serem avaliados. Os resultados por região foram os seguintes:

 

Região

Enviados

Enviados %

Recom.

Recom. %

Rec/Env %

Norte

69

23,88

14

22,95

20,29

Nordeste

80

27,68

22

36,07

27,50

Sudeste

46

15,92

9

14,75

19,57

Sul

66

22,84

9

14,75

13,64

Centro-Oeste

28

9,69

7

11,48

25,00

Brasil

289

100,00

61

100,00

21,11

 

Dos 289 projetos enviados, somente 61 foram recomendados, o que representa apenas 21% dos projetos, ou seja, 79% foram rejeitados.

 

Segundo a CAPES, os programas destinados à qualificação docente são institucionais, isto é, administrados pelas próprias instituições. Existem, atualmente, quatro modalidades distintas de programas de qualificação docente nas Instituições Públicas de Ensino Superior:

 

·    ·     Programa de Qualificação Institucional (PQI);

·    ·     Programa Institucional de Capacitação Docente e Técnica (PICDT);

·    ·     Programa de Mestrado Interinstitucional (MINTER);

·    ·   Programa Institucional de Capacitação de Docentes do Ensino Tecnológico (PICDTec);

 

O PICDT, principal programa de capacitação docente nos últimos 26 anos, está em fase de extinção. Sua última distribuição de cotas de bolsas ocorreu no 1º semestre de 2002. Os benefícios previstos no programa estão mantidos para os que se encontram na condição de bolsistas até o final da vigência da bolsa. Ele se caracterizava por financiar a qualificação do corpo docente/técnico de instituições de ensino superior, concedendo às instituições cotas de bolsas para a realização de cursos de mestrado e doutorado nos cursos de pós-graduação recomendados pela CAPES. O programa era gerenciado pela própria instituição de origem dos docentes/técnicos por meio de uma Comissão de Capacitação Docente, que conduzia o processo de seleção e acompanhava os bolsistas.

 

Em 1998, a CAPES, em decorrência da redução nos gastos públicos determinados pelo FMI, após os acordos de novembro de 1997, realizou um forte corte nas cotas de bolsas a serem concedidas às IES públicas. Após a crise cambial de 1999, um novo corte foi realizado e o programa foi sendo gradativamente extinto. Os seguidos cortes fizeram com que a capacitação docente nos moldes do PICDT não se configurasse como prioridade para a CAPES. Foi necessária a introdução de um novo sistema de qualificação docente que utilizasse um menor volume de recursos, ao lado de permitir o controle, por parte da CAPES e do aparato acadêmico a ela associado, dos rumos da formação acadêmica pretendida pelos que demandam estes programas. Confirma-se a adequação do sistema nacional de pós-graduação aos principais eixos da política imposta pelo FMI/Banco Mundial para a educação superior no país: corte de verbas públicas e controle total sobre as IES.

 

Nesse contexto, foi apresentado o PQI como um programa de apoio a missões de estudo e de trabalho, voltado à formação de docentes de Instituições Públicas de Ensino Superior e vinculado a projetos conjuntos de pesquisa e de pós-graduação entre equipes de diferentes regiões do País ou de diferentes cidades da mesma região e de diferentes Instituições. Seu lançamento seria feito no início de 2001, mas, devido às pressões do Fórum de Pró-Reitores de Pós-Graduação (FOPROP), sua versão original sofreu modificações e conseqüente atraso. Deve-se salientar que sua formulação final foi discutida pelos pró-reitores de pós-graduação durante a greve de 2001, à revelia da categoria[3].

 

O PQI visa a promover, segundo a CAPES, o desenvolvimento acadêmico das IES públicas, por meio:

·    ·   “do estímulo à elaboração e à implementação de estratégias de melhoria do ensino e da pesquisa, desde o nível departamental até o institucional;

·    ·   da qualificação de docentes e excepcionalmente de técnicos, preferencialmente em nível de doutorado, no âmbito de projetos de pesquisa em cooperação com outras instituições do país; e

·    ·   do apoio a políticas de desenvolvimento das atividades de ensino e pesquisa dos docentes recém-qualificados."[4]

 

A principal justificativa para sua introdução, ainda segundo a CAPES, é a instauração de uma cultura de planejamento da pesquisa e da pós-graduação nas IES públicas, algo que, segundo a agência, não existia no caso do PICDT. No entanto, desde 2001, vem sendo desenvolvido um outro programa com essa mesma finalidade: O Programa Nacional de Cooperação Acadêmica – PROCAD.

 

Os resultados apresentados pela primeira chamada de propostas nos moldes do PQI, mostram que ele é apenas um arremedo de política de capacitação docente para as IES públicas, com vícios ainda maiores e mais graves do que os do PICDT. Além disso, o número de projetos recomendados (61) foi inferior aos aprovados em 2001 para o PROCAD (84).

 

A questão mais grave a ser discutida é, sem sombra de dúvida, a perda de autonomia das IES públicas sobre os rumos da capacitação de seu quadro docente. O PQI transfere esta decisão para a CAPES e para as Comissões de Especialistas incumbidas de analisar as propostas apresentadas. Cabe à CAPES  deliberar sobre a adequação técnica das propostas à lógica do PQI, expressa em um conjunto de regras que determinam obstáculos à aprovação de projetos direcionados a programas de pós-graduação de pequenas instituições na condição de receptoras e sem o aparato de apoio necessário à consecução dos projetos nos moldes exigidos. Cabe, em seguida, às Comissões de Especialistas dar o toque final de legitimidade a todo este cenário, deliberando acerca do mérito das propostas, em especial sobre “a capacidade das equipes envolvidas”[5] e a “relevância da pesquisa proposta para o desenvolvimento da área e consolidação do potencial de ensino e pesquisa”[6].

 

A lógica do corte de projetos é ainda mais perversa em relação às IES localizadas em regiões periféricas do país, como pode ser constatado no resultado dos projetos recomendados pela CAPES: dos 7 projetos encaminhados para as IES da região Norte, apenas 1 foi recomendado, enquanto as IES da região sudeste concentram  71% dos projetos recomendados, ou seja, com o PQI é reforçada a lógica perversa da pós-graduação brasileira centralizando na região sudeste os “centros de excelência”. Ora, mas quem são os docentes que formam as comissões de especialistas? A que IES pertencem? A que interesses atendem? São majoritariamente das IES da região sudeste e é lógico que irão beneficiar suas próprias Instituições canalizando a maior parte da verba para essas e perpetuando a assimetria da pós-graduação no Brasil.

 

A segunda questão de relevância a ser discutida é o estímulo à endogenia nos grupos de uma mesma instituição e entre IES. O PQI não admite que projetos de cooperação oriundos de uma mesma unidade acadêmica e envolvendo diferentes grupos receptores possam ser apresentados para análise e julgamento. Deste modo, é estabelecido um vínculo de exclusividade na formação docente entre um grupo de uma IES de origem e um grupo de uma IES receptora, descaracterizando, assim, um dos parâmetros fundamentais internacionalmente defendidos para a  determinação da qualidade de um grupo acadêmico, que é a diversidade de sua formação. Efetiva-se, assim, a política definida pelo Banco Mundial: controle sobre a formação do pesquisador e, conseqüentemente, sobre a produção de conhecimento no país.

 

Em decorrência desta questão, uma terceira se apresenta: a subordinação dos projetos acadêmicos das IES de origem aos já realizados nos centros receptores. Trata-se de mecanismo semelhante às relações existentes entre os grupos de pesquisa sediados nos países centrais e os núcleos reprodutores nos países periféricos. A estes é posta a tarefa de simplesmente seguir, difundir e dar sustentação aos ditames determinados por aqueles em termos de temas, de metodologias, de referenciais teóricos, de categorias de análise.  

 

O PQI cumpre, portanto, a função de reforçar o processo de precarização do trabalho docente, impondo obstáculos à obtenção da titulação e relegando a docência nas instituições de origem à simples reprodução dos conhecimentos desenvolvidos nas instituições receptoras. Cumpre, principalmente, a tarefa de dar legitimidade aos cortes impostos pelo governo federal para os programas de qualificação docente nas IES. Cumpre, além disso, o objetivo de direcionar a produção do conhecimento, concentrando-a nas pesquisas aplicadas, orientadas para os interesses do mercado, reduzindo o tempo de formação e o número de docentes, inclusive por critérios etários discriminatórios e ilegais, como a exigência de o docente ou o técnico ter, ao entrar no programa, mais 14 anos de exercício até a data prevista para sua aposentadoria.

 

O Movimento Docente (MD) compreende que este programa está na contramão dos princípios que orientam a Proposta do ANDES-SN para a Universidade Brasileira, quais sejam: autonomia universitária nos termos do art. 207 da CF/88; padrão unitário de qualidade; democracia interna e liberdade de organização; indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão e condições dignas de trabalho docente. Para tanto, é fundamental que seja implementada a carreira única para as IES públicas, a isonomia salarial, a estabilidade no emprego, o regime estatutário de contratação, ingresso na carreira unicamente por meio de concursos públicos de provas e títulos e critérios transparentes e definidos de forma coletiva e democrática para aprovação de projetos de pesquisa e políticas de capacitação docente[7].

 

A alternativa apresentada pelo ANDES-SN ao PQI é o Plano de Capacitação Docente (PNCD), resultado da pedagogia da luta travada em 14 greves, durante as duas últimas décadas, a fim de barrar as iniciativas de desmantelamento das universidades públicas no Brasil. O PNCD é um dos elementos centrais do Projeto do ANDES-SN para  a Universidade Brasileira, articulado com o Plano de Carreira Única.

 

 O MD entende que uma política de capacitação docente deva ser o suporte para uma carreira docente única, estruturada na progressão por titulação e por avaliação de desempenho acadêmico do corpo docente, que garanta, desse modo, um processo contínuo de capacitação nas IES públicas. É ela que levará à construção de um padrão unitário de qualidade entre as IES.

 

A proposta de diretrizes do PNCD do ANDES-SN prevê que a responsabilidade pela sua elaboração seja do Conselho Nacional de Educação, constituído nos moldes propostos pelo PNE da sociedade brasileira, devendo fixar mecanismos que garantam o afastamento integral dos docentes, visando à realização dos programas de capacitação; a manutenção de todos os direitos,  garantias e vantagens permanentes dos docentes durante o período de afastamento para titulação; auxílio de translado extensivo a dependentes; bolsa de estudo, tendo valores compatíveis com os gastos gerados pela realização da atividade de capacitação; e recursos financeiros necessários para o efetivo desempenho dos programas de capacitação.

 

Ao lado disso, o PNCD prevê que todas as IES tenham planos institucionais de capacitação de seus docentes, de modo a possibilitar a participação em programas de capacitação de, no mínimo, 20% do corpo docente de cada unidade, setor ou departamento. As prioridades para a realização dos respectivos programas de capacitação docente devem ser definidas por cada unidade, setor ou departamento, devendo a IES prover os recursos necessários para este fim. E, por fim, os recursos para a execução das atividades dos programas de capacitação devem estar garantidos nos orçamentos  da União, estados ou municípios.

 

O PICDT era um programa de qualificação mais próximo do PNCD defendido pelo movimento docente enquanto o PQI é a negação da qualificação docente. Sua desativação se constitui em uma grave ameaça à educação superior pública e à implementação da Proposta do ANDES-SN para a Universidade Brasileira. Ante essa ameaça, urge que as seções sindicais se mobilizem para assumir posição critica e barrar mais esta estratégia de desmantelo da universidade pública.

Em defesa do PNCD - do ANDES-SN.

 

Em defesa da UNIVERSIDADE PÚBLICA LAICA,

GRATUITA e SOCIALMENTE REFERENCIADA

 

Diretoria do ANDES-SN – Gestão 2002-2004.


 


 

[1] BIRD/BANCO MUNDIAL. La Ensanñanza Superior. Las lecciones derivadas de la experiencia. (El Desarrollo en la práctica). Washington, D.C.: BIRD/BANCO MUNDIAL, 1995, p.64.

[2] Programa de Qualificação Institucional – Orientações para Solicitação de Financiamento – 2002; Programa de Qualificação Institucional – Orientações para Solicitação de Financiamento – 2003.

[3] Basta verificar os ofícios FOPROP/010/01, de 13 de setembro de 2001, e FOPROP/011/01, de 21 de setembro de 2001; relato da reunião entre o Diretório Nacional-FOPROP e a Diretoria da CAPES realizada em 1º de outubro de 2001; Programa do XVI Encontro de Pró-Reitores de Pós-Graduação, realizado em Salvador, BA, de 29 a 31 de outubro de 2001. É importante, também, verificar o relato da reunião entre o Diretório Nacional-FOPROP e a Diretoria da CAPES, realizada em 24 de janeiro de 2002, em especial o tom final de agradecimento à CAPES adotado pelo FOPROP quanto ao formato final do PQI.

[4] Programa de Qualificação Docente – Orientações para Solicitação de Financiamento – 2002.

[5] Programa de Qualificação Institucional – Orientações para Solicitação de Financiamento – 2003.

[6] Programa de Qualificação Institucional – Orientações para Solicitação de Financiamento – 2003.

[7] Caderno 2 do ANDES-SN: Proposta da ANDES-SN para a Universidade Brasileira.